domingo, 30 de janeiro de 2011

Literatura: "Lúcia McCartney", de Rubem Fonseca



Rubem Fonseca, para mim, é o melhor exemplo do que posso chamar de literatura nua e crua. É direto, não faz rodeios, não ilude o leitor com falsas promessas e artimanhas (que, nos últimos anos, quando penso em mercado editorial, só serve para transformar o livro em um caça-níqueis vazio) e adora trabalhar com temáticas do submundo social, algo que eu adoro tendo em vista que nada é mais insuportável do que personagens moralistas e rotineiros com finais previsíveis, desses que parecem tirados das novelas infames que a Rede Globo produz. Difícil encontrar um outro autor com uma carreira que impacte tanto quanto a sua. Num universo rodeado por prostitutas, policiais corruptos, agiotas, todo tipo de picaretagem e onde as ruas parecem falar, confessando seus inúmeros pecados no ouvido do leitor, Fonseca arrebata o seu público-alvo misturando estilos, tendências, fazendo de seus personagens gato e sapato e criando conspirações mesmo quando isso pareça impossível à primeira vista. E a prova viva desse intelecto arrojado e inquieto está mais do que evidente em seu terceiro livro, Lúcia McCartney.

Se existe uma palavra que resuma melhor essa seleção de contos é mosaico. Rubem se adapta a cada história criando nuances distintas e o que se percebe ao longo da leitura é que estamos diante de vários escritores dentro de um só. Como se fossem os heterônimos, criados pelo português Fernando Pessoa, dessa vez a serviço da narrativa. O resultado dessa façanha é o retrato de uma sociedade torpe, onde valores e ética são meros detalhes onde o que realmente importa é sobreviver, custe o que custar. E acreditem: os personagens aqui narrados levam esse desejo de sobrevivência às últimas consequências.

Seja na prostituta que dá título ao livro - que, de tão popular na época de seu lançamento, chegou a render uma adaptação cinematográfica realizada pelo diretor David Neves, tendo a atriz Adriana Prieto como sua intérprete -, no lutador de vale tudo do conto "O desempenho" que parece estar no inferno astral de sua carreira até que a maré vira a seu favor, no advogado de moral duvidosa de "O caso F.A" que transforma a busca por uma garota de programa em apenas mais um motivo para aumentar a sua já extensa carteira de clientes amorais, na paródia das falsas correntes milagrosas ilustrada em "Corrente" que, de crendice popular, viraram artefatos cults do cotidiano carioca, num típico assalto de bairro como o lido em "Manhã de sol" ou mesmo na forma abusiva com que se utiliza do idioma inglês para dar voz e corpo ao universo de seus protagonistas em "Correndo atrás de Godfrey", o escritor está - a cada conto e de forma cada vez mais intensa - deixando suas múltiplas facetas aflorarem, gerando uma personalidade alucinada e multimidiática. 

Uso de siglas, referências obtidas junto a fontes jornalísticas e materiais impressos de uso, até então, exclusivo de investigadores policiais, poemas, memórias pessoais fragmentadas, críticas, entrevistas, relatórios, roteiros de cinema... Esse pout-pourri de linguagens textuais presente em Lúcia McCartney faz da obra uma das mais inventivas da década de 1960 e mais atual do que nunca nos dias de hoje, levando-se em consideração tanto a carência de nomes no mercado que façam a diferença, se reciclando e modernizando-se a cada trabalho, quanto o fato de muitas obras chamadas atualmente de originais não passarem de meros arremedos ou ecos de autores passados (e, por conseguinte, mais brilhantes). Para muitos o livro pode até parecer confuso - nossos leitores da nova geração gostam mesmo é de tudo explicado em demasia e com finais que o satisfaçam -, violento, direto em excesso, enaltecendo certas falhas de caráter, mas em se tratando de Rubem Fonseca isso é mais do que natural. Até por que não se constrói uma fama de autor forte e decisivo, recluso a entrevistas e opiniões externas, sem se quebrar alguns paradigmas, não é mesmo?

     

2 comentários:

  1. Nunca li nenhum livro do Rubem Fonseca. Esse parece ser legal!

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  2. Polêmico e controverso, Rubem Fonseca é uma referência e um dos meus escritores preferidos da Literatura Brasileira. "O Cobrador" é sua obra quem mais gosto e sempre que passo os olhos nos contos deste livro, fico arrepiado tamanha catarse. Simplesmente fantástico! "Mandrake" e "Feliz Ano Novo" são outros de destaque. "Lucia McCartney" ainda não conferi, mas pretendo tirar o atraso quando sobrar um tempinho.

    Ótimo texto, Pseudo.
    gostei do espaço para a literatura no blog.


    abraço!

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