quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Memória: Spectreman



1986/1987. Eu tinha por volta de meus 10, 11 anos e toda vez que chegava da escola nessa época o ritual era sempre o mesmo: largar a mochila em cima da cadeira, ligar a TV no programa do Bozo e esperar a voz do narrador apresentando a música-tema do episódio seguida da seguinte abertura: "Planeta: terra. Cidade: Tóquio. Como em todas as metrópoles deste planeta, Tóquio se acha hoje em desvantagem em sua luta contra o maior inimigo do homem: a poluição. E apesar dos esforços das autoridades de todo o mundo, pode chegar um dia em que a terra, o ar e a águas venham a ser tornar letais para toda e qualquer forma de vida. Quem poderá intervir? Spectremannn!". Começava ali mais um capítulo da série que marcou a minha infância. E as saudades que esse tempo me trazem, ah! são lúdicas.

Spectreman, criação de Tomio Sagisu, estava a anos luz de tudo o que vemos hoje em dia em termos de produções envolvendo efeitos especiais. A história do cientista símio Dr. Gori que, acompanhado de seu fiel escudeiro Karas, criava a partir de detritos provenientes da poluição japonesa as mais bizarras criaturas, até o aparecimento do herói dos raios espectrais (daí o nome do personagem), sempre a postos para executar as ordens dos dominantes, era das mais primárias. Cenários então? isopor em sua quase totalidade, maquetes que pareciam produzidas por estudantes do ensino fundamental, fora as criaturas nefandas, que misturavam espuma, camurça, couro e outros materiais baratos. Porém, a capacidade de atrair espectadores que o seriado gerou na segunda metade da década de 80, com as reprises exibidas na antiga TVS, hoje SBT (originalmente a produção fora exibida na Rede Record nos anos 70, sem obter o mesmo sucesso) era gigantesca. Quantas e quantas vezes o assunto da conversa na escola ou na rua não era sobre o episódio do dia anterior.

É inegável a influência da produção cinematográfica hollywoodiana O Planeta dos Macacos, de Franklin J. Schaffner na série, bem como é impossível não destacar a dublagem, que tinha seus toques de comicidade propositais (afinal de contas, tratava-se da mesma equipe dos Estúdios Maga, responsável por dublar os programas Chaves e Chapolin, além do desenho animado Snoopy, também parte da grade da emissora paulista na época). Para infelicidade dos fãs que curtiram esse período, Spectreman durou módicos 63 episódios, que na verdade seriam pouco mais de 30, já que cada episódio era sempre dividido em duas partes. Uma pena para aqueles que, como eu, ainda moleque, viam naquele tipo de produção o máximo em termos de audiovisual e criatividade. Se até hoje sou fã de filmes trash, devo isso ao herói japonês e sua turma.

Gostem ou não os críticos mais exaltados, a grande verdade é que esse super-herói nipônico conquistou uma legião e tanto de fãs e foi - não resta a menor dúvida - o pontapé para que muitas emissoras nacionais (cabe aqui um destaque para a Rede Manchete no final dos anos 80 e início dos 90) enveredassem pelo gênero Tokusatsu como fênomeno de audiência. Outras franquias como Ultraman, Jaspion, Changeman, Jiban, Jiraya, até o mais recente Power Rangers, acabaram meio que se tornando desdobramentos dessa mentalidade televisiva que viu nessas produções baratas, mas que foram se aprimorando ao longo dos anos, um forte potencial de mercado com público certo. Se hoje fala-se muito - e às vezes desnecessariamente - em 3D, Imax, CGI, Rotoscopia e outras tecnologias de captação de imagem relacionadas ao mercado audiovisual, confesso que dificilmente uma outra técnica ou módulo de exibição conseguirá me impactar tanto quanto a originalidade desses produtores japoneses. A indústria de cinema deveria reaprender a pensar a sétima arte e seus métodos de produção dessa forma!


Abertura da série:


 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Quadrinhos: "Mesmo Delivery", de Rafael Grampá



Dois caminhoneiros, uma estrada, uma carga indecifrável a quem os entregadores sequer podem ver, um trabalho perigoso. A reunião desses poucos elementos já é o suficiente para termos uma história com requintes de crueldade e morbidez. Sem contar o clima dark proposto pelas aves negras sobrevoando as páginas da revista no começo e no fim da história. Rafael Grampá, o quadrinista responsável por esse ácido e forte Mesmo Delivery, é isso: sarcástico, contundente, afiado como uma lâmina. E não tem a menor vergonha de se apropriar de tendências e estilos que vem se consagrando nos últimos anos em várias vertentes artísticas.

Em sua incursão por esse universo roadie ele agrega desde as obsessões tarantinescas até um clímax que lembra, em parte, os contos sobrenaturais do mestre do policial Edgar Allan Poe. E para que não venham me acusar de ter deixado de fora a música, é fácil perceber a influência de canções que vão de Peral Jam a Nirvana, passando por Creedence Clearwater Revival, quando folheamos cautelosamente - essa é uma palavra que precisa ser administrada com cuidado durante toda a leitura - página a página desse espetáculo visual. Seus traços brutos (tanto quanto os músculos de um dos caminhoneiros envolvidos na trama) que nem por isso perdem o rigor e a excelência quando unidos, compõem um conjunto muito bem tecido de cores e linguagem, deixando o leitor sem ar e, ao final da história, desejando mais e mais.

Grampá segue uma linha que tem se tornado referência no quadrinho nacional, principalmente depois da ascensao internacional de nomes como Gabriel Bá e Fábio Moon, que vêm arrebatando prêmios de renome no exterior. E esse estilo tem uma explicação muito fácil de ser definida pelos leitores: eles não tem vergonha de arriscar. Digo isso porque sempre percebi nos quadrinhos brasileiros uma vontade incômoda de parecer tradicionais em excesso (salvo, é claro, exceções lendárias como Henfil Angeli e outras feras de longa data). Já nessa nova geração de autores, ao contrário, não há limites no que concerne a reponder a pergunta: "O que esperar quando se lê um trabalho desses jovens geniais?". E esse é exatamente o grande mérito dessa obra gráfica. É inventiva e faz com que o leitor queira sempre um pouco mais no quadrinho seguinte.

Terminada essa experiência - pois trata-se de mais do que uma simples leitura -, chego a conclusão, como chegarão aqueles que ousarem enfrentar esse desafiador trabalho, de que mais do que mostrar um universo até então desconhecido para os leitores tupiniquins, Mesmo Delivery reinventa a arte gráfica nacional num patamar nunca antes visto na história da nona arte (pelo menos, a parte da história que nos interessa). Diálogos fortes, duros, sem pudor, batalhas sangrentas por motivos torpes ou medíocres, frases de duplo sentido, rixas, apostas e um sentimento misto de niilismo e redenção bem ao gosto do autor (procurem seus outros álbuns. Vale a pena!), que vem se transformando numa das mentes mais criativas - e corajosas - dos últimos anos. E isso por si só já vale uma conferida em sua criação. 


Matéria publicada na Universo HQ sobre Mesmo Delivery:
    
Preview da HQ:


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Cinema: "Cisne Negro", de Darren Aronofsky



Até que ponto a palavra superação pode ser administrada? E a partir de quando perdemos o controle e nosso único desejo é o de ser o número 1 no que quer que façamos? Não é de hoje que os tablóides e os programas televisivos mostram o que artistas e desportistas são capazes de fazer para se manter no lugar mais alto do pódio ou em evidência na carreira, sempre conquistando novos papéis de destaque. O problema é justamente quando todos os limites do ético e do saudável são ultrapassados em nome de uma suposta fama ou mérito. E é aqui que reside o grande dilema da jovem bailarina Nina Sayers (vivida de forma intensa pela atriz Natalie Portman) no drama Cisne Negro, dirigido pelo cineasta Darren Aronofsky.

Escolhida como protagonista para a próxima montagem do balé Lago dos Cisnes, a promissora bailarina, ainda novata e não totalmente conhecedora das armadilhas que envolvem a sua profissão (e o mundo da dança de uma forma geral), tropeça em suas próprias dúvidas, divergências, na falta de coragem para assumir certos posicionamentos diante de uma mudança tão radical em sua vida, sem contar as sucessivas exigências vindas de dois focos distintos: a primeira dentro de casa, pela mãe, Erica Sayers (Barbara Hershey), uma relação praticamente possessiva, e a segunda profissional, enredada pela sedução e a cobrança excessiva de seu diretor, Thomas Leroy (Vincent Cassell, em atuação brilhante). Com o aparecimento da misteriosa rival Lily (a belíssima Mila Kunis), seus questionamentos internos chegam a uma condição que beira à loucura total. E somente com muita força de vontade e determinação será capaz de combater tantos "adversários".

Aronofsky mistura estilos que em muito lembra o cinema psicológico de Brian de Palma (principalmente pela condição claustrofóbica em que se encontra a personagem principal) e o estilo narrativo de Roman Polanski (com lembranças que remetem a Repulsa ao sexo). E dessa mistura de sobrenaturalidade com drama existencial ele cria uma metáfora para pensarmos o papel do ser humano numa sociedade tão exigente e que cobra tanto das pessoas, dividindo-a em dois grupos desiguais: os melhores e o restante da população. Com uma câmera na mão que surpreende ao focalizar a dor, o desespero e o sacrifício que envolve uma das formas de arte mais genuínas e fantásticas da história da humanidade, o diretor realiza mais uma película audaz - o que vindo dele é praticamente clichê, vide produções fortes em seu currículo tais como Réquiem para um Sonho e o seu trabalho anterior, o visceral O Lutador -, compondo assim uma cinematografia de extremos, algo que parece agradá-lo profundamente.

Em poucas palavras, Cisne Negro é subversivo por mostrar o balé além do espetáculo, das luzes e dos aplausos de agradecimento vindos do público. É forte, indigesto em alguns momentos - o cineasta não tem medo de pesar a mão ao retratar certas psicoses e desejos da artista que desce às profundezas de sua própria alma rumo ao estrelato -, brilhante. E, provavelmente, acredito que é isso que está faltando no cinema atual: um pouco de ousadia. E não meros efeitos especiais, ousadias tecnológicas e elencos esbeltos que mais funcionam como belas paisagens, porém sem conteúdo algum. A grandeza do filme está justamente em se expor, algo que a cinematografia mundial contemporânea parece estar desaprendendo nos últimos anos (Deus queira que não!).      

Trailer do Filme:

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Animação: "O Expresso Polar", de Robert Zemeckis



Nos últimos anos eu tenho achado as festas de fim de ano um grande porre. Já foi tempo que eu curtia natal e reveillon ao lado da família com vontade. Hoje, por conta da hipocrisia em que o comércio exacerbado transformou a festa - não se tem mais a consciência de que a data representa a época do nascimento de Jesus Cristo, muitos nem mesmo sabem quem ele é, e o que importa é faturar em nome do papai noel, fenômeno de mercado criado pela Coca-Cola lá pelos idos da década de 1930, segundo fontes (im)precisas -, prefiro a solidão (ou, no máximo, poucos parentes), uma TV ligada num bom filme e que o dia passe rápido, de preferência sem me incomodar. No natal desse ano, entretanto, o SBT fez o favor de reexibir a animação O Expresso Polar, criada pelo diretor Robert Zemeckis (de sucessos de bilheteria e crítica como De Volta para o Futuro e Forrest Gump: o contador de histórias) com uma tecnologia pioneira que transformava os atores em personagens animados. Pois bem: rever a produção me fez lembrar de antigos natais nostálgicos e cheios de alegria descompromissada (algo que anda em falta em tempos de globalização capitalista).

A história do garoto solitário que na véspera de natal embarca no expresso ferroviário que o conduzirá, junto com crianças de todas as partes do mundo, para conhecer o pólo norte e a casa do Papai Noel em pessoa, mexeu com meu arquivo memoriográfico mental de um tempo em que dormir com um olho aberto na expectativa de que o bom velhinho deixasse algo na meia, na janela ou onde quer que fosse (e acreditem: esse lance da chaminé, aqui na América Latina, é um grande furo na história original que nunca é bem adaptado para outras regiões do mundo, principalmente para quem mora em países tropicais como o nosso) era o maior barato e sinal de que a sua infância, normalmente cheia de sonhos, ainda estava longe de ter os dias contados.

Um dos grandes méritos do sucesso do filme, em sua época de exibição, além do trabalho realizado por Zemeckis, foi o afinco com que o ator Tom Hanks se envolveu no projeto. Aqui, Hanks encara nada mais do que seis personagens, dentre eles o próprio Papai Noel, num esforço criativo que, pelo resultado final, deve ter sido um tanto desgastante. Um pena, contudo, que com o passar do tempo e a insistência do cineasta em usar novamente a tecnologia em seus projetos posteriores (o épico A Lenda de Beowulf e o também natalino Os Fantasmas de Scrooge, baseado em clássico literário de Charles Dickens) o encanto tenha se perdido, bem como as bilheterias modestas - se levarmos em consideração o custo dessas produções - tenham alicerçado o insucesso do formato.

O legado deixado pela película, que vai muito além de um mero entretenimento infantil, tem a ver com um conceito que a atual sociedade não tem demonstrado muito interesse nos últimos anos: memória. Por vivermos numa era tão imediatista e onde tudo é lucro - motivos mais do que suficientes, como disse no início desse texto, para ter me desencantado com esse período de festas que encerra o ano - parece que estamos perdendo, gradualmente, a capacidade de nos encantarmos com as pequenas coisas da vida. E O Expresso Polar nos faz o favor de trazer um pouco desse lúdico, desse modesto, de volta às nossas vidas. E quem não gostaria de ser criança pelo menos mais um vez, nem que fosse para relembrar por poucos instantes tudo que a idade adulta e as exigências da maturidade o fizeram esquecer?

Trailer do filme: